Sobre carretéis e livros
- Horácio Amici
- 4 de mar. de 2019
- 3 min de leitura
De que forma afeto e aprendizagem se relacionam? No senso comum, tende-se a acreditar que uma aprendizagem duradoura e efetiva só pode existir se o processo de aprender envolve, em alguma medida, uma capacidade de esforço muito intensa, em que o sujeito abdica de seu desejo para internalizar o conhecimento — que está sempre fora de si.
Essa concepção mais tradicional de educação, que vê o sujeito quase que fora do processo de aprender, defende que uma boa aprendizagem consiste em um bom transmissor de conhecimento, ativo e implicado, frente a um receptor de conhecimento, passivo e dócil. Educação bancária, como definiu Paulo Freire, depositária, passível de ser reproduzida em qualquer contexto.
Não é preciso recorrer a estudos muito aprofundados para reconhecer que esse é um modelo de educação concebido historicamente como falho, pouco potente, pelo menos se concebermos que a escola (e outros espaços educadores) deve garantir a aprendizagem de todas as crianças. A educação depositária funciona sim para alguns poucos, mas parece ser sempre esse espaço em que só poucos podem ser verdadeiramente educandos.
Na contra mão de tudo isso vem a psicologia — e a experiência. Para Freud, o conceito de afeto está intimamente ligado ao conceito de pulsão (energia pulsional) e, portanto, ao desejo do sujeito. Para a psicanálise, toda ação do sujeito é pautada por esses conceitos, ficando difícil se pensar em um ato livre de implicação afetiva (ação impessoal e isenta de nós mesmos) — até quando concebemos algo para além de nós, estamos nos carregando enquanto referência.
Freud traz um exemplo muito bonito para ilustrar essa sua forma de enxergar o impacto do desejo em nossas vidas: um menino pequeno (seu neto, aliás) que ganha um carretel e que, ao invés de brincar com ele de forma convencional (puxando-o) o transforma em uma espécie de iô-iô. O jogo de fazer aparecer e desaparecer o objeto — afastando-o e aproximando-o de si — que parece fortuito e casual, conta Freud, revela algo sobre a vivência e os sentimentos da criança: tentando lidar com o fato da sua mãe sair de manhã para o trabalho e só voltar muito mais tarde, o menino transforma um pedaço de madeira em uma maneira de falar um pouco sobre sua angústia. Toda ação do sujeito é elaboração — é narrar, lançar algo de si mesmo para o mundo.
Emília Ferreiro, outra autora muito importante para a Psicologia e a Educação, também ajuda a pensar em como a aprendizagem se relaciona tanto ao sujeito que se põe a aprender quanto, inevitavelmente, às suas vivências, experiências e desejos.
Psicóloga e pedagoga argentina, Emília Ferreiro trabalhou com Jean Piaget e é reconhecida com uma das maiores referências no Brasil do modelo de educação que é chamado de construtivista. Na mesma linha que Freud, a autora vai apontar como é impossível se pensar em uma educação verdadeira sem levar em consideração que aprendizagem só existe se há participação ativa dos sujeitos — só é possível aprender a partir de um processo de construção compartilhada, através de implicação e não meramente de repetição incessante e irrefletida.
Olhando assim, livros e carretéis não parecem tão distantes. Pensando na atuação da Psicologia voltada às questões da aprendizagem e dos diagnósticos que são tão comuns no âmbito escolar, só parece existir ação efetiva quando se consegue implicar o sujeito de uma outra maneira na sua forma de se entender enquanto sujeito que aprende. É preciso possibilitar um outro lugar para a criança que “não aprende” e que transgride, para que ela possa encontrar na escola um espaço que seja também seu — e a partir daí, então, ter também potência de aprender.
E, então, os limites entre questões “psicológicas” e “pedagógicas” parecem quase se diluir: assim como a fronteira — que existe entre um simples ato de brincar e o afeto do sujeito que brinca, e que é mais tênue do que damos conta de acreditar.

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