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É preciso uma aldeia inteira mais uma vez

  • Foto do escritor: Horácio Amici
    Horácio Amici
  • 14 de mai. de 2020
  • 2 min de leitura

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, por mais que essa frase ainda não soe propriamente como uma verdade, o sentido dela já nos é compartilhado: a educação de uma criança depende da articulação de cuidado, afeto e implicação de inúmeros atores sociais.


Nos últimos tempos, sempre que penso nessa frase - e na potência que ela traz - acaba me vindo uma outra, muito parecida, mas que sinto que ainda não entrou no nosso imaginário: É preciso uma aldeia inteira, também, para cuidar de um ancião.


O processo de envelhecimento, muitas vezes, vem atrelado a perdas parciais ou totais de autonomia em relação às Atividades de Vida Diária (autocuidado, mobilidade, alimentação, higiene pessoal, autonomia para vestir-se) e também em relação às Atividades Instrumentais de Vida Diária (gerenciar finanças, fazer compras, preparar refeições, lidar com transportes, gerenciar medicações).


Nessas situações de maior vulnerabilidade, a ação de cuidadores, de maneira conjunta e articulada, é de fundamental importância. O que ocorre no Brasil, porém, é um cenário muito diferente: a maioria das pessoas idosas que precisam de um cuidado mais de perto acabam sendo assistidas por uma única pessoa, na maioria das vezes por mulheres adultas.


Essas cuidadoras acabam sobrecarregadas, uma vez que o cuidado já demanda, em si, uma disponibilidade integral e exaustiva. Junta-se a isso, muitas vezes, a dupla jornada que essas mulheres já exerciam (trabalho dentro e fora de casa) e o resultado de toda essa carga emocional e de mais trabalho acaba sendo, muitas vezes, o adoecimento.


Quem cuida de quem precisa cuidar? Vários trabalhos acadêmicos têm começado a trazer essas discussões para o campo da Saúde Mental, questões que, muitas vezes, tendem a permanecer invisíveis, uma vez que a mulher ainda é vista socialmente como aquela que naturalmente cuida e aquela que, portanto, deve (sozinha) cuidar.


Esse cenário, por si só, já é muito preocupante enquanto tema de Saúde Pública, porém quando olhamos para as projeções do cenário populacional brasileiro, a questão se torna ainda mais alarmante. O Censo de 2014 do IBGE apontou que a população idosa representava, naquele ano, 13,7%. Estima-se que, em 2050, em pouco mais de 30 anos, esse número atinja a taxa de quase 30%.


Pensar na questão do envelhecimento é um destino não só da Saúde, mas também de todos os outros campos sociais. Enquanto a lógica de cuidado for pensada ainda de forma individual e sem reconhecimento, nos veremos cada vez mais sem alternativas e sem possibilidades de ação. Com urgência, é necessário pensar em como podemos construir uma rede de cuidados de fato múltipla e efetiva, que respeite e humanize quem precisa de cuidado, que valorize e dê potência para quem é atribuído o papel de cuidar.


Dentro de toda a rede que deve ser estabelecida, a Psicologia Clínica tem um papel importante nesse processo de construção de um novo modelo de relação com a velhice: tanto de escuta daqueles que cuidam, quanto de acolhimento daquele que é cuidado, de orientação das famílias e das instituições.


É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. É preciso uma vila toda para cuidar de um ancião.




 
 
 

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